Como Shirley Temple salvou um estúdio de Hollywood da falência

“A lição era ‘tempo é dinheiro’ e ‘é trabalho, não é brincadeira’. Aprendi antes de me tornar uma estrela.”

Quando Shirley Temple (1928-2014) foi entrevistada pela BBC sobre sua infância como superestrela, em 1989, ela vivia um segundo ato marcante na sua carreira, como diplomata americana. Na época, ela era conhecida pelo seu nome de casada, Shirley Temple-Back.

Mesmo tendo sido, um dia, a estrela mais bem paga de Hollywood, ela precisava trabalhar. A maior parte dos seus milhões já havia desaparecido há muito tempo.

“Você também salvou a 20th Century Fox da falência, não foi?”, perguntou à atriz o apresentador da BBC Terry Wogan (1938-2016). Ela respondeu “acho que sim”.

Em 1933, a Fox Studios estava quase falida.

Fundada em 1915 por William Fox (1879-1952), a empresa prosperou na era do cinema mudo. Mas, quando chegou a Grande Depressão, em 1929, ela operava com prejuízo, devia milhões e os preços das suas ações despencaram.

A solução foi uma menina loira de cabelo ondulado.

Duas semanas antes de assinar seu contrato com o estúdio, Temple havia sido chamada para o elenco do filme Alegria de Viver (1934), ao lado de James Dunn (1901-1967), que interpretaria seu pai.

Seus papéis eram relativamente pequenos, mas a dupla deixou tão boa impressão que eles foram imediatamente chamados para outros filmes juntos. E Shirley Temple passou a ser a prata da casa.

A primeira incursão de Temple no show business veio quando sua mãe a levou para ter aulas de dança, com dois anos e meio de idade.

“Eu tinha tanta energia – e não tirava soneca – que ela me colocou em uma escola de dança vizinha, a menos de 3 km da nossa casa”, contou ela à BBC. “E eu iria estudar ali, sabe, aprender rumba e tango.”

Foi naquela escola que ela foi descoberta pelo diretor Charles Lamont (1895-1993) e escalada para uma série de curtas-metragens chamada Baby Burlesks (1932-1933).

Ao todo, ela recebeu US$ 10 por dia de filmagem, mas os ensaios não eram pagos. Temple não poupava críticas àquela produção.

“Ele não era um grande produtor”, contava ela. “Ele era um produtor muito barato. Fazia parte de um setor de Hollywood chamado de ‘Fila da Pobreza’.”

Nuvens negras

‘Foi uma época muito, muito difícil, muito difícil. Ser uma estrela era difícil’

Lamont e o produtor Jack Hays (1898-1975) trabalhavam para a Educational Films Corporation. Shirley Temple, então com três anos de idade, estrelou oito filmes, mas o set de filmagem não era um lugar agradável, nem para ela, nem para os outros atores-mirins que trabalhavam ali.

Ela chegou a descrever uma punição para mau comportamento no set de gravação.

“Eles tinham duas caixas de som no set e uma delas tinha um grande bloco de gelo dentro.”

“Quando qualquer um de nós se comportava mal, éramos colocados, um a um, na caixa preta para resfriar e pensar sobre aquilo”, segundo ela. “No escuro, com a porta fechada.”

“Tive muitas dores de ouvido, tive muito terçol, tive muitos problemas com aquilo. Fiquei na caixa várias vezes.”

Os pais também não eram autorizados a ficar no set com os filhos. Por isso, a mãe de Temple fazia roupas, dava aulas de representação e penteava seu cabelo todas as noites, formando os cachos característicos.

Os temas dos filmes parecem incrivelmente inadequados hoje em dia. Temple os descreveu como “princípio de filmes adultos”.

Uma das primeiras personagens que ela interpretou se chamava Morelegs Sweet Trick, um jogo de palavras em inglês com a estrela do cinema Marlene Dietrich (1901-1992).

O filme War Babies apresentava Shirley Temple com três anos de idade, vestida com uma blusa sem alças e uma fralda presa com um alfinete de segurança que parecia cômico, de tão grande.

Ela dançava para outras crianças, que interpretavam soldados. Eles brigavam por ela e lhe davam pirulitos.

Em Polly Tix in Washington, ela é uma “acompanhante” enviada para seduzir um “senador”.

Na primeira cena, ela usa sutiã e aparece lixando as unhas. Mais tarde, ela surge no escritório do senador usando colares de pérolas e diz ao bebê que interpreta o político que ela foi enviada para “entretê-lo”.

Temple registrou na sua autobiografia Child Star (“Estrela criança”, em tradução livre), que os filmes eram “uma exploração cínica da nossa inocência infantil”, além de “ocasionalmente racistas ou sexistas”.

A etapa seguinte foi uma série de pequenos papéis sob contrato com o produtor, roteirista e diretor Jack Hays. Quando ele faliu, seu pai comprou seu contrato de volta, percebendo como aquilo havia sido ruim desde o princípio.

Não muito tempo depois, um compositor que trabalhava para Fox observou Temple dançando em um salão. Ela foi chamada para um teste para o filme Alegria de Viver, que estava sendo filmado. Temple conseguiu um pequeno papel, que representou duas semanas de pagamento.

O filme partia da premissa de que a Grande Depressão foi causada pela falta de “otimismo”. Por isso, os testes pretendiam encontrar pessoas que pudessem animar o público.

Temple e James Dunn foram parceiros em uma sequência de dança. Não havia tempo para que ela aprendesse novas coreografias, de forma que ele ensinou a Dunn uma dança que havia aprendido para outra apresentação.

Imediatamente após a filmagem, ela recebeu a proposta de um contrato de um ano, com possível extensão por mais sete, por US$ 150 por semana. E sua mãe também era paga para acompanhá-la no set.

Elas assinaram o contrato no dia 21 de dezembro de 1933. Na sua autobiografia, Temple chamou aquela oportunidade de “a primeira de uma série de nuvens escuras que iriam pairar nos sete anos seguintes”.

O próximo filme de Temple e Dunn foi A Queridinha da Família, que estreou em abril de 1934. Ela também foi emprestada para outros estúdios por milhares de dólares, muitas vezes mais do que ela recebia.

Ainda naquele ano, foi lançado o filme Olhos Encantadores. Escrito especialmente para a dupla, o filme apresentava a canção que se tornaria sua marca registrada: On the Good Ship Lollipop.

Mas a Fox Studios vinha enfrentando dificuldades desde a queda da bolsa de valores, em 1929.

Em 1934, a Fox se uniu à 20th Century Pictures, formando a 20th Century Fox. Segundo a revista americana Vanity Fair, o executivo da Fox, Winfield Sheehan (1883-1945) declarou: “Eles não compraram o estúdio da Fox, eles compraram Shirley Temple.”

Elevando o espírito

Durante o seu primeiro ano na empresa, Shirley Temple apareceu em 10 filmes. Foi um ano tão marcante que, na cerimônia do Oscar de 1935, ela recebeu o primeiro Prêmio Juvenil da Academia. Até hoje, Temple é a pessoa mais jovem a ter recebido o Oscar.

Ela provou ser uma grande atração de bilheteria para o público da era da Depressão, que procurava ver filmes alegres e otimistas no cinema.

O então presidente americano Franklin D. Roosevelt (1882-1945) declarou, sobre Shirley Temple:

“Durante esta Depressão, quando o espírito das pessoas está mais baixo do que nunca, é esplêndido que, por apenas 15 centavos, um americano possa ir ao cinema, ver o rosto sorridente de um bebê e esquecer os seus problemas.”

À medida que seus filmes passavam a ser mais lucrativos, seu pagamento também aumentava, até que ela se tornou a estrela mais bem paga de Hollywood, com 10 anos de idade.

Sua agenda de trabalho pode ter sido intensa, mas, na idade adulta, ela relembrava com carinho aquela época.

Depois de assinar o contrato com a Fox, sua mãe ficava sempre com ela no set. Aliás, uma questão importante que diferenciava Temple das outras estrelas infantis era o seu relacionamento próximo com seus pais.

Ela dedicou sua autobiografia à sua “mãe amorosa”. Mas outras estrelas-mirins não tiveram a mesma sorte.

Em 1939, a Califórnia aprovou a Lei dos Atores-Mirins do Estado, conhecida como Lei Coogan, em homenagem a Jackie Coogan (1914-1984).

Coogan nasceu 13 anos antes de Temple. Ele se tornou um dos primeiros astros infantis ao contracenar com Charles Chaplin (1889-1977) no clássico O Garoto, de 1921.

Coogan ganhou milhões de dólares, mas sua mãe e seu padrasto gastaram o dinheiro. Ele processou o casal em 1938.

A batalha jurídica levou a Califórnia a aprovar uma lei especificando condições de trabalho e garantindo que 15% do salário dos atores-mirins fossem depositados em uma chamada conta Coogan.

Temple teve sorte com seus pais até certo ponto. Seu pai trabalhava em um banco e, por isso, ele se tornou gerente de negócios da filha.

Mas ela contou à BBC que “ele saiu da escola logo depois do sétimo ano” e foi convencido a fazer maus investimentos.

“Dos US$ 3,2 milhões que eu havia recebido de tudo – vendas de bonecas, livros, roupas etc. –, eu fiquei com US$ 44 mil em uma conta fiduciária”, contou ela.

Muitos aspectos dos seus filmes não envelheceram bem. Shirley Temple contou à BBC que ela e Bill “Bojangles” Robinson (1878-1949) foram os primeiros parceiros de dança inter-raciais do cinema. Mas as cenas em que eles se tocavam, muitas vezes, eram cortadas.

Fora da tela, Hollywood costumava ser um lugar sinistro para os jovens atores. Muito tempo depois do fim da sua carreira no cinema, Temple contaria o comportamento predatório que enfrentou quando tinha apenas 12 anos de idade.

Ela se aposentou do cinema com 22 anos. Seu último filme foi O Eco de um Beijo, de 1949.

Mas este não foi o fim da sua interessante carreira profissional. Ela começou a trabalhar em relações internacionais e foi embaixadora dos Estados Unidos em Gana e na antiga Checoslováquia.

Durante sua entrevista, Temple contou à BBC que trabalhar como embaixadora em Gana “foi o melhor emprego de toda a minha vida”.

Wogan perguntou: “Você se cansou daquela música Good Ship Lollipop?

“Não”, ela respondeu. “Ela me levou muito longe.”

Leia a versão original desta reportagem, com os vídeos da entrevista de Shirley Temple à BBC (em inglês), no site BBC Culture.

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