Para especialistas, ‘limitadores de velocidade’ colocados pela PM na Maré têm semelhanças com as barricadas do tráfico

Quatro ruas do Conjunto de Favelas da Maré, na Zona Norte, receberam, na segunda-feira, um novo dispositivo de segurança, chamado, pela Polícia Militar, de “limitador de velocidade”. Apesar do nome pomposo, ele se resume a blocos de concreto colocados em zigue-zague nas vias. A medida foi justificada pelo órgão como sendo necessária para impedir a entrada de cargas roubadas na região. No entanto, para especialistas em Segurança Pública, a decisão é um tiro no pé: se assemelha às barricadas do tráfico de drogas.

Os dispositivos foram colocados nas ruas Sargento Silva Nunes, Bitencourt Sampaio, Teixeira Ribeiro e 29 de julho, impactando os acessos às favelas Nova Holanda e Parque Maré. A primeira, inclusive, foi alvo de uma operação contra o roubo e furto de cargas no mesmo dia da instalação dos bloqueios, contabilizando a 38ª ação policial na região, este ano. Vinte e uma escolas da rede municipal e duas da estadual ficaram fechadas.

Segundo dados de agosto, disponibilizados pelo ISP, o número de registros de roubo de cargas no estado teve alta de 112%, passando de 154, em 2023, para 327 no mês passado. Na área do 22º BPM, fazendo a mesma comparação mensal, o índice também teve alta, passando de 11 ocorrências para 19.

Em nota no site, a ONG Redes da Maré afirmou que os bloqueios prejudicam “a livre circulação de veículos para abastecimento do comércio local, entregas para a população, bem como a atividade de construção civil e circulação da população”. A instituição estima que há quase 3.200 empreendimentos no conjunto de favelas, que reúne 16 comunidades.

Em entrevista ao GLOBO, o porta-voz da PM, Major Maicon Pereira, garantiu que os limitadores de velocidade não atrapalham o ir e vir dos moradores. Motos, carros, caminhões de até dois eixos e veículos essenciais, como ambulâncias e aqueles da coleta de lixo conseguem circular livremente, mas em velocidade reduzida, desviando dos novos obstáculos.

— Os limitadores de velocidade não são como as barricadas. Elas servem para forçar o motorista a reduzir a velocidade, desviando dos blocos. O nosso objetivo é impedir a entrada de cargas roubadas, de veículos grandes, como caminhões-cegonha. Nenhuma rua foi fechada, sabemos que a Maré tem um grande fluxo de pessoas e de comércio, não queremos atrapalhar a vida dos moradores — explica o Major.

Nas redes sociais, contudo, algumas pessoas pontuaram que a coleta de lixo não foi feita de forma integral após a instalação dos bloqueios. Em nota, a Comlurb atribuiu a ausência do serviço à operação de segunda, afirmando que, “a empresa conta com um protocolo de segurança, que é posto em prática quando a equipe encontra situações de conflito ou violência que possam expor os funcionários a riscos”. O serviço, conforme o posicionamento divulgado, foi retomado ontem.

Para Pablo Nunes, pesquisador do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (Cesec), a decisão de colocar os limitadores de velocidade é uma “resposta simples a um problema complexo”, que muito se assemelha as barricadas impostas pelo crime organizado — tão combatidas pela própria PM.

— Me surpreende a utilização desse tipo de bloqueio pela Polícia Militar porque a relação com as barricadas utilizadas por traficantes é direta. As operações policiais realizadas no Rio acontecem exatamente para retirar esses objetos, que dificultam o fluxo, a circulação da população e mesmo a das forças de segurança. Essa decisão acaba transmitindo uma mensagem de que falta um pensamento novo, esforço e empenhos mais assertivos. As barricadas parecem ser uma resposta muito mais rápida e simples, com poucos reflexos a longo prazo — reforça.

Opinião semelhante é compartilhada pela pesquisadora Carolina Grillo, do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos, da UFF.

— É difícil compreender que essa seja uma medida possível porque, se a gente refletir, a própria Polícia Militar realiza operações para a retirada dessas obstruções, que são vistas como formas de contenções do próprio trabalho da polícia. Agora, o próprio estado está obstruindo vias públicas, o que também vai impactar o acesso das forças de segurança nas comunidades. E vale lembrar que não é atribuição da PM alterar a disposição das ruas, é necessário permissão da prefeitura.

Em maio passado, o secretário da Polícia Militar, coronel Marcelo de Menezes Nogueira, disse ao GLOBO que um dos seus objetivos na pasta é acabar com as barricadas. À época, falou que de janeiro a março deste ano, 1.922 toneladas de concreto haviam sido retiradas com a remoção dos bloqueios.

— A barricada representa territorialidade. Ela faz com que as linhas de ônibus sejam desviadas, que os caminhões de lixo não possam fazer coleta, que ambulâncias particulares e do Corpo de Bombeiros não tenham acesso aos locais. Então, não é só a polícia atingida com a barricada. A maior vítima é o morador, com o seu direito fundamental de ir e vir atingido. Já determinei aos comandantes: combate incessante às barricadas — disse o secretário, 13 dias após assumir a Polícia Militar.

Colocar obstáculos nas entradas das comunidades não é proposta nova para a segurança do estado. Em 2019, o ex-governador do Rio Wilson Witzel chegou a prometer os bloqueios, afirmando que a medida iria “reduzir praticamente a zero o roubo de carga”.

— Vamos fechar os corredores de acesso onde tem a entrada de roubo de carga na entrada de comunidades. Isso diminuirá muito a pirataria e o financiamento do tráfico — enfatizou durante uma cerimônia de entrega de aparelhos de ar-condicionado.

Esconderijo para cargas roubadas

Na manhã de ontem, uma operação da 60ª DP (Campos Elísios), com apoio do Ministério Público do Rio e do 15º BPM (Duque de Caxias), prendeu onze pessoas, incluindo um ex-PM, por associação criminosa para o roubo de cargas variadas, principalmente contra a empresa de cigarros Souza Cruz, que estima prejuízo de cerca de R$ 3 milhões. As buscas foram feitas em Duque de Caxias, São João de Meriti, Itaboraí e na Capital, no Complexo Penitenciário de Gericinó, onde foram cumpridos dez mandados de busca e apreensão. Cinco suspeitos continuam foragidos.

A operação aconteceu após o Ministério Público receber o inquérito policial e denunciar 16 pessoas pelo crime. No documento da polícia, que reuniu informações de 2019 e 2020, há citações de que cargas roubadas no estado eram escondidas na Maré, cujas comunidades são cercadas pelas mais movimentadas vias da cidade: Avenida Brasil e Linhas Vermelha e Amarela.

Os criminosos pagavam uma comissão aos traficantes para que o material roubado ficasse “protegido” dentro de galpões, principalmente na Nova Holanda. Na semana passada, por exemplo, um motorista de caminhão foi feito refém durante a madrugada, na Avenida Brasil. Ele transportava uma carga de remédios, avaliada em aproximadamente R$ 650 mil, quando foi abordado e obrigado por criminosos a dirigir até o interior da favela. O grupo fugiu ao avistar uma equipe da PM, que conseguiu resgatar a vítima.

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