Vandalismo que mata: destruição e furtos de bens públicos causam acidentes com vítimas no Rio

O silêncio da madrugada de 16 de janeiro de 2021 foi interrompido às 5h, por um forte barulho na Rua Comandante Ari Parreiras, em São Gonçalo. A dona de casa Raquel Ribeiro, moradora do bairro Porto da Madama, lembra de ter se levantado correndo, achando que “um caminhão tivesse batido em um carro”. Ao chegar na sacada, surpreendeu-se ao ver que uma moto tinha passado por um bueiro destampado e que o seu condutor estava caído na calçada. Horas antes do acidente, a tampa metálica havia sido furtada, de acordo com a prefeitura. A vítima do vandalismo foi o tatuador e grafiteiro Leonardo da Conceição Pessanha, o Leo Pakato, que morreu aos 41 anos, deixando mulher e filha, que tinha 10 anos à época.

Vandalismo que envergonha: depredações custam mais de R$ 220 milhões no Rio A reciclagem de um crime: do fio de cobre ao bueiro, o caminho percorrido pelos metais furtados

2 de 6 Leo Pakato morreu aos 41 anos, ao passar com sua moto sobre bueiro destampado na Rua Comandante Ari Parreiras, em São Gonçalo — Foto: Reprodução / Facebook / Fundação de Arte de Niterói Leo Pakato morreu aos 41 anos, ao passar com sua moto sobre bueiro destampado na Rua Comandante Ari Parreiras, em São Gonçalo — Foto: Reprodução / Facebook / Fundação de Arte de Niterói

No segundo dia da série de reportagens “Um crime contra todos”, mostramos que o vandalismo mata, de inocentes, como Leo, até responsáveis pela depredação. Em geral, os autores são enquadrados nos crimes de dano e/ou furto, e a pena branda acaba não coibindo a prática, segundo o criminalista Carlos Fernando Maggiolo, professor de Direito Penal. Outro desafio é identificar o criminoso.

A morte de Leo Pakato, reconhecido “pela perfeição de seus traços, tanto nos desenhos, tatuagens quanto em seus grafites” — conforme descreveu a Fundação de Arte de Niterói, em nota de pesar divulgada à época de sua morte — ainda machuca quem o amava, como a viúva Michele Moreira, que prefere não relembrar o episódio.

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— Ainda é desconfortável para mim — diz ela, que move ação na Justiça contra o município e a Cedae. Segundo o escritório de advocacia que a defende, uma prova pericial poderá apontar de quem era a responsabilidade pelo equipamento.

A prefeitura de São Gonçalo alega que a reposição da tampa cabia a uma concessionária de telefonia, e que “não comenta processos judiciais em andamento”. A nova tampa tem a inscrição “águas pluviais”. Já a Cedae diz que foi comprovado que se tratava de caixa de empresa de telefonia. Segundo a Polícia Civil, a “investigação está em andamento na 73ª DP (Neves) e é acompanhada pelo Ministério Público”.

3 de 6 Bueiro que teve tampa furtada em 2021, em São Gonçalo: na ocasião, Leo Pakato morreu depois de cair de moto ao passar sobre o buraco — Foto: Custódio Coimbra / Agência O Globo Bueiro que teve tampa furtada em 2021, em São Gonçalo: na ocasião, Leo Pakato morreu depois de cair de moto ao passar sobre o buraco — Foto: Custódio Coimbra / Agência O Globo

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Conforme o município, são realizadas cerca de 60 substituições de tampas de bueiros e ralos de ferro mensalmente, com custo de R$ 17 mil.

O vandalismo também transforma em vítima quem precisa reparar o que foi destruído. Em abril de 2022, Ricardo de Jesus, colaborador da Rioluz, morreu na estação Leila Diniz, do BRT, em Curicica. De acordo com a empresa, ele fazia a “manutenção de uma câmera vandalizada”, quando “sofreu um choque mesmo utilizando todos os equipamentos de proteção obrigatórios”.

Um crime contra todos: vandalismo se espalha por todo o Rio

1 de 29 Prefeitura anuncia instalação de GPS em peças metálicas, para chegar aos ferros-velhos receptadores; na foto, apreensão de 20 toneladas de fios de cobre — Foto: Divulgação / Fábio Costa / SEOP

2 de 29 Os 1.155 km de cabos furtados de CET-Rio e da Rioluz equivalem a mais do que a distância do Rio a Porto Seguro (BA) — Foto: Divulgação / Fábio Costa / SEOP

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3 de 29 Na saída da praia, jovens quebram alçapão do ônibus e viajam na saída da Zona Sul — Foto: Hermes de Paula / Agência O Globo 4 de 29 Estádio do Maracanã precisou instalar uma oficina para reparar a grande quantidade de cadeiras depredadas — Foto: Hermes de Paula / Agência O Globo 5 de 29 Maracanã: em 127 jogos, realizados em 2022 (ano todo) e 2023 (até 11 de novembro), 8.063 assentos foram depredados — Foto: Hermes de Paula / Agência O Globo 6 de 29 Custo com cadeiras vandalizadas no Maracanã é de R$ 2,6 milhões. Valor é repassado para clubes mandantes e entidades de futebol — Foto: Hermes de Paula / Agência O Globo 7 de 29 Assentos vandalizados (jan.2022-nov.2023) equivalem a 11,5% do total de 70 mil lugares do Maracanã — Foto: Hermes de Paula / Agência O Globo 8 de 29 Papeleiras destruídas são transformadas em “papões”, uma espécie de pá usada na varrição da Comlurb — Foto: Custódio Coimbra / Agência O Globo 9 de 29 Por mês, 800 “papões” são produzidos na fábrica Aleixo Gary, da Comlurb, em Campo Grande — Foto: Custódio Coimbra / Agência O Globo 10 de 29 Numa única noite, criminosos furtaram 67 papeleiras do entorno da Lagoa Rodrigo de Freitas — Foto: Comlurb / Divulgação 11 de 29 Estátua de bronze do túmulo de Cláudio de Sousa foi furtada do cemitério São João Batista, em Botafogo, em novembro. A peça pesava 120 quilos — Foto: Gabriel de Paiva / Agência O Globo 12 de 29 Antes e depois do túmulo do ex-presidente da ABL Cláudio de Sousa Foto: Adriana Lorete e Gabriel de Paiva 13 de 29 Portão furtado do Mausoléu do Marquês do Paraná nunca mais reapareceu — Foto: Hermes de Paula 14 de 29 Túmulo de Clara Nunes teve as argolas de bronze furtadas — Foto: Reprodução 15 de 29 Em outubro de 2023, 35 ônibus foram incendiados em represália à morte do miliciano Faustão, sobrinho de Zinho, na Zona Oeste — Foto: Fabiano Rocha / Agência O Globo 16 de 29 Ônibus convencionais, BRTs e de fretamento foram consumidos pelas chamas no ataque — Foto: Domingos Peixoto 17 de 29 Alçapões de ônibus estão entre os itens vandalizados nos coletivos — Foto: Hermes de Paula / Agência O Globo 18 de 29 Saída de Copacabana, Aterro do Flamengo e entornos de Jacaré e Maré são os lugares que ônibus mais são depredados, diz RioÔnibus— Foto: Marcelo Carnaval/ Agência O Globo 19 de 29 Contêiner da Comlurb sendo carregado por homem pendurado em ônibus no Rio — Foto: Reprodução 20 de 29 Entre os monumentos vandalizados no Rio, estátua da mãe do marechal Deodoro da Fonseca foi furtada de monumento na Glória em 2020 — Foto: Gabriel de Paiva / Agência O Globo 21 de 29 Peça para dona Rosa Paulina da Fonseca pesava 400 quilos — Foto: Gabriel de Paiva / Agência O Globo 22 de 29 Estátua de Carlos Drummond Andrade, em Copacabana, teve seus óculos furtados mais de 10 vezes desde a inauguração, em 2002 — Foto: Márcio Alves / Agência O Globo 23 de 29 Busto à ex-primeira-dama Sarah Kubitschek foi furtada em Copacabana em março de 2023 — Foto: Reprodução 24 de 29 Bronze dá lugar à resina: projeto-piloto da Secretaria municipal de Conservação troca material da estátua a Orlando Silva, no Cachambi, após furtos — Foto: Divulgação 25 de 29 Comlurb testa papeleiras envoltas por concreto no Parque Madureira e no Méier; metade das 32 mil instaladas na cidade foram depredadas entre 2022 e 2023 — Foto: Divulgação / Comlurb 26 de 29 Funcionário da Prefeitura do Rio instala proteção em caixa de luz para evitar atos de vandalismo — Foto: Divulgação / Prefeitura do Rio 27 de 29 Chafariz dos Golfinhos, na Glória, passou seis anos sem funcionar. Restaurado, foi religado em setembro de 2023 e, desde então, já foi depredado por três vezes — Foto: Divulgação / Secretaria municipal de Conservação 28 de 29 À luz do dia, homem não se inibe. Pendurado na fiação da Avenida Edgard Romero, em Madureira, ele tenta furtá-la — Foto: Reprodução 29 de 29 Em novembro de 2023, PM fez uma das maiores apreensões de cabos de telefonia da história. As 200 toneladas foram apreendidas em operação nos morros do Fallet, Fogueteiro e Coroa — Foto: Divulgação / PMERJ— Foto: Divulgação / PMERJ

Na Região Metropolitana, despesas com o vandalismo passam de R$ 220 milhões no período entre janeiro de 2022 e outubro de 2023

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Ainda no ano passado, em agosto, um corpo foi encontrado dentro de uma galeria subterrânea da Light, no Centro do Rio. O morto, diz a concessionária, estava tentando furtar cabos de energia.

4 de 6 Consequências do vandalismo — Foto: Editoria de Arte Consequências do vandalismo — Foto: Editoria de Arte

Ao cortar um cabo, o criminoso passa a ser condutor de uma corrente de 1.000 ampères, pontua o gerente de rede subterrânea da Light, Leonardo Bersot, que admite sentir “frio na barriga” quando vê vídeos de pessoas sem treinamento em contato com a rede elétrica.

— A eletricidade é muito forte, e pode levar a lesões graves, queimaduras geradas pelo calor da corrente elétrica, ou até mesmo à morte. Principalmente para quem não tem treinamento — observa Leonardo, assinalando que os profissionais tomam as precauções necessárias para realizar o serviço de forma segura.

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Pena de detenção não passa de três anos

Dados do Instituto de Segurança Pública (ISP) revelam que, em 2022 e no primeiro semestre deste ano, foram registrados mais de 1.400 casos de dano ao patrimônio público no estado. O crime de vandalismo está enquadrado no artigo 163 do código penal, que trata de dano (“destruir, inutilizar ou deteriorar coisa alheia”), com pena de detenção de um a seis meses. Ele é qualificado se cometido com violência ou ameaça, assim como quando é contra bens públicos ou de concessionárias, com pena de até três anos.

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— A probabilidade de o cidadão ser solto e responder ao processo em liberdade é enorme. Só se recomenda a prisão quando a pena é a partir de quatro anos. Então, hoje, nosso ordenamento jurídico é um convite para que se pratique o crime de vandalismo — diz Maggiolo, que sugere a criação de um tipo penal para vandalismo, com pena de reclusão de três a cinco anos.— Enquanto o Congresso não se mobilizar para criar um tipo penal exclusivo para esse fenômeno social, não vamos conseguir um comportamento social adequado.

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A sanção é tão pequena que, no mês passado, um homem flagrado por agentes do programa Segurança Presente furtando um poste em Charitas, Niterói, ficou preso por apenas dois dias. Aos policiais, disse que furtou “porque quis, já que na rua têm vários”. Ele foi levado para a 76ª DP (Niterói) carregando o poste. Transferido para o sistema prisional, obteve alvará de soltura 24 horas depois.

Um crime contra todos

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De tão recorrente, o vandalismo acaba envolvendo até prestadores de concessionárias. Na última sexta-feira, um deles, terceirizado da Light, foi preso em flagrante por furto qualificado, após relato ao Disque Denúncia (2253 1177). Com ele, foram encontradas mercadorias avaliadas em R$ 20 mil, como 200 metros de cabos e disjuntores com logotipo da empresa. A Light diz que “estão sendo tomadas as medidas cabíveis”.

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5 de 6 Prestador de serviço da Light foi preso na última sexta-feira por furto qualificado em Duque de Caxias. Com ele, foram encontrados 200 metros de fios e disjuntores com logotipo da empresa — Foto: Divulgação / Disque Denúncia Prestador de serviço da Light foi preso na última sexta-feira por furto qualificado em Duque de Caxias. Com ele, foram encontrados 200 metros de fios e disjuntores com logotipo da empresa — Foto: Divulgação / Disque Denúncia

A maior parte das denúncias anônimas sobre vandalismo no estado, feitas nos primeiros dez meses deste ano, citam ações contra a infraestrutura de empresas de telefonia e TV a cabo. O material inclui tampas de metal de caixas de visitas e cabos. Em seguida no ranking, estão atos contra ônibus e a iluminação pública.

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6 de 6 Destruição que vira denúncia — Foto: Editoria de Arte Destruição que vira denúncia — Foto: Editoria de Arte

Alguns casos que chegam ao Disque Denúncia revelam a ligação de traficantes com a destruição. Eles são responsabilizados por cortar cabos de internet da Rua Euclides da Cunha, na Vila São João, em São João de Meriti. Outro relato informa que apagam lâmpadas de postes da Rua Imbé, em Coelho Neto, para facilitar a venda de drogas numa barraca de salgados desativada.

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