Três dias depois de vir à tona que seis pacientes foram infectados pelo vírus HIV em transplantes no Rio, a Polícia Civil prendeu na manhã de ontem o ginecologista Walter Vieira e Ivanilson Fernandes dos Santos, sócio e técnico do laboratório de análises clínicas Patologia Clínica Doutor Saleme (PCS), respectivamente. Em depoimento, divulgado pelo Jornal Nacional, da Rede Globo, Ivanilson disse que, a partir de janeiro deste ano, o controle de qualidade da sorologia no laboratório passou a ser semanal. Antes era diário pois, segundo ele, podem ocorrer erros quando os reagentes ficam muito tempo na máquina analítica. O funcionário afirmou que a medida foi tomada por economia.
Ivanilson foi preso usando uma roupa de enfermagem na unidade do PCS Saleme no Instituto Estadual de Cardiologia Aloysio de Castro, no Humaitá, onde a Anvisa encontrou 39 irregularidades. Ao chegar à Delegacia do Consumidor (Decon), que fez a operação, o funcionário não quis falar com a imprensa.
O outro preso, o médico Walter Vieira, tio do ex-secretário estadual de Saúde e deputado federal Doutor Luizinho (PP), assina o laudo com resultado negativo para HIV feito em um dos doadores. O segundo resultado com erro foi atestado por Jacqueline Iris Bacellar de Assis, funcionária do laboratório que está foragida. A polícia também não localizou o biólogo Cleber de Oliveira Santos, que fazia os exames. A ação da Decon, batizada de Verum, cumpriu ainda 11 mandados de busca e apreensão em Nova Iguaçu e na capital. Na decisão pela prisão temporária, é destacado que o “laboratório teria induzido a erro a equipe de médicos transplantadores que viabilizaram a transferência dos órgãos com a consequente contaminação dos pacientes”.
Secretário de Polícia Civil, Felipe Curi disse que a falta de controle de qualidade dos exames de diagnóstico de HIV levou à infecção dos seis transplantados. Segundo ele, o teste do reagente responsável por detectar o vírus estava sendo feito semanalmente, visando diminuir as despesas do laboratório:
— As informações iniciais dão conta de que houve uma falha operacional de controle de qualidade nos testes. E tudo isso com o objetivo de obter lucro. A questão contratual também está sendo investigada pela Polícia Civil.
O delegado André Neves, diretor do Departamento-Geral de Polícia Especializada (DGPE), destacou que o laboratório deixou de lado a segurança dos testes:
— Houve uma determinação, que estamos apurando, para que a análise fosse feita semanalmente. E, com essa lacuna, você flexibiliza e aumenta a chance de ter algum efeito colateral.
Matheus e Márcia Vieira, filho e irmã de Walter Vieira, respectivamente, foram conduzidos à delegacia para prestar depoimento. Ambos são sócios do laboratório, mas não foram alvos de ordens de prisão. Matheus se manteve em silêncio, mas sua defesa disse que ele deve depor ainda esta semana, assim que tiver acesso à investigação. Márcia, que é bióloga, informou que atuava na área administrativa do estabelecimento, sem condições de dar informações sobre os testes de HIV.
— Nesse primeiro momento, eles não foram alvo de prisão porque nós investigamos essa questão do processo de colheita dos exames e de como funcionava essa logística. Nada impede que posteriormente outras pessoas sejam objeto de operação da Polícia Civil. Essa é apenas uma primeira fase, certamente haverá desdobramento. As investigações seguem agora em sigilo — disse Felipe Curi.
O Tribunal de Justiça do Rio autorizou ainda a quebra do sigilo de dados dos sócios e funcionários do PCS Saleme. O laboratório foi contratado pela Fundação Saúde, órgão vinculado à Secretaria estadual de Saúde, para fazer os exames de 18 unidades — incluindo testar o sangue de todo candidato a doador de órgão. Os quatro que tiveram a prisão decretada são investigados por crime contra as relações de consumo, associação criminosa, falsidade ideológica, falsificação de documento particular e infração sanitária.
Indagado sobre a possibilidade de outras pessoas terem sido infectadas, Wellington Dias, delegado titular da Decon, informou que as amostras de sangue de quase 300 transplantados estão sendo analisadas:
— Isso demanda um pouquinho de tempo, começou a ser feito, mas ainda não terminou.
Em depoimento, Walter Vieira acusou três de seus funcionários de terem errado na emissão dos laudos dos testes para detecção do HIV, como antecipou Lauro Jardim em seu blog no GLOBO. Segundo o advogado Afonso Destri, que defende o preso, seu cliente afirmou que houve uma preparação incorreta do exame pelo técnico de laboratório Cleber dos Santos, que seria um biólogo capacitado para a tarefa. De acordo com o médico, um tubo utilizado para administrar o sangue coletado do doador de órgãos não teria sido adequadamente manuseado para que pudesse gerar o resultado correto. Assim, o “falso negativo” teria sido gerado e “liberado” por Cleber.
Sobre sua assinatura estar no laudo, Walter Vieira explicou ela foi inserida no documento porque ele foi o último a fazer outros exames, que não o de HIV. Esse teste foi feito em janeiro. Sobre o segundo laudo, o sócio da PSC disse que Ivanilson dos Santos identificou a reação positiva para o vírus, mas lançou o resultado errado no sistema do laboratório. Esse laudo foi assinado por Jacqueline de Assis, já que Ivanilson não teria credenciais para “liberar” o resultado. Esse resultado levou à infecção de três pessoas que receberam rins e fígado.
Em entrevista ao GLOBO no domingo, Jacqueline de Assis negou que tenha atestado laudos. Ela disse que só fazia correções. Nesses documentos, a assinatura dela aparece junto a um número do Conselho Regional de Biomedicina, que pertence a outra pessoa. Jacqueline não tem essa formação, mas Walter Vieira disse à polícia que ela atuava como biomédica no laboratório. O advogado José Felix informou que Jacqueline se entregará hoje à polícia.
Em nota, o PCS Saleme disse que dará suporte médico e psicológico aos infectados.
o que você precisa saber
Transplantes de órgãos com HIV:
Seis pessoas testaram positivo para HIV após receberem órgãos transplantados no Estado do Rio. O laboratório PCS Lab Saleme (que fica em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense) era o responsável pelos exames dos doadores e apresentou resultado negativo para HIV de dois doadores, mas eles eram soropositivo. Entre os transplantes feitos estão os de rins, fígado, coração e córnea.
A investigação da Secretaria estadual de Saúde do Rio sobre o caso começou em setembro desse ano e culminou com a interdição do laboratório. A secretaria informou que, desde então, tomou uma série de medidas, como suspensão dos contratos e a abertura de uma sindicância interna para identificar e punir os responsáveis.
Mais de 10 unidades de saúde eram atendidas pelo laboratório investigado.
Walter Vieira, um dos sócios do laboratório PCS Lab Saleme, é casado com a tia do deputado federal e ex-secretário de Saúde do Rio Doutor Luizinho (PP). Walter é pai de Matheus Sales Teixeira Bandoli Vieira, também sócio, que assinou contratos com o governo do estado do Rio. Doutor Luizinho foi secretário de janeiro a setembro de 2023.
As investigações indicam que os laudos foram falsificados por um grupo criminoso e usados pelas equipes médicas, induzindo-as ao erro. Isso levou os pacientes a serem contaminados.
Um dos pacientes infectados morreu — as causas do óbito ainda estão sendo apuradas.
O laboratório PCS Lab Saleme assinou três contratos com o Governo do Rio que, somados, chegam a R$ 17,5 milhões. Dois deles foram realizados de forma emergencial, com dispensa de licitação.
Segundo levantamento na Transparência do Estado, até outubro deste ano, o laboratório teve empenhos autorizados pelo governo no valor de R$ 21,58 milhões. A capacidade técnica para produzir exames foi questionada por uma concorrente durante o processo de licitação.
“Não fiz nada para adquirir isso. O erro foi de pessoas irresponsáveis”, relatou uma das pessoas infectadas por HIV após receber um rim de um doador soropositivo.
A Polícia Civil realizou a operação Verum e cumpriu quatro mandados de prisão e 11 de busca e apreensão em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense, e na capital. Foram presos Walter Vieira, apontado como sócio do laboratório; e Ivanilson Fernandes dos Santos que, segundo as investigações, é um dos responsáveis técnicos pelos laudos emitidos.
A assinatura de Jacqueline Iris Bacellar de Assis aparece em um dos laudos que atestaram que os doadores de órgãos não tinham HIV. Ela reconheceu que as rubricas nos documentos são suas, mas negou qualquer envolvimento no caso e disse que sequer é biomédica. Contra ela, há um mandado de prisão em aberto.
Os envolvidos são investigados por crime contra as relações de consumo (art. 7º, inciso VII da Lei 8.137/90), associação criminosa, falsidade ideológica, falsificação de documento particular e infração sanitária, entre outros.
Ao definir o caso como um “acontecimento sem precedentes na história do transplante brasileiro”, o ex-presidente da Associação Brasileira de Transplante de Órgãos (ABTO) e especialista em transplante de fígado, Ben-Hur Ferraz Neto, afirmou que as doações são feitas com “segurança hoje em todo o sistema” e que quem está à espera de um órgão pode ficar tranquilo.
Neto falou sobre o protocolo de testagem, definido como “muito rigoroso”, após a constatação do óbito, com testes sorológicos de diversas doenças.
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